O problema grave é a instrumentalização da ciência para fins políticos, que resulta numa relativização da própria ciência. Factos e teorias científicas não devem ser escolhidos “a la carte”.
A politização da ciência a que temos assistido nas últimas décadas é um risco enorme para a sua credibilidade junto da opinião pública. É também um potencial risco para a normalidade da civilização em que a dita ciência está inserida. O melhor estudo de caso desta politização está na investigação ligada ao aquecimento global e às alterações climáticas, mas temos também na recente pandemia Covid-19 um bom exemplo.
A maioria esmagadora das pessoas não tem conhecimento suficiente para poder julgar a verdade ou verosimilhança de uma teoria científica. Assim sendo, o uso prático de factos científicos assenta numa base de confiança: as pessoas partem do princípio que os cientistas seguem uma metodologia correcta no seu trabalho e que agem de boa fé na procura do conhecimento. Elas não podem, por exemplo, afirmar estritamente que “sabem” que um determinado medicamento curará uma doença. Ou que “sabem” que consumir este ou aquele produto provoca cancro. Podem afirmar que, com base na melhor informação que lhes chega – por intermédio de especialistas – esse medicamento será adequado para tratar certa doença. Ou que o risco de cancro será maior se consumir dado produto excessivamente.
A teoria do aquecimento global antropogénico é aceite pela maioria das pessoas com base nessa confiança nos cientistas. Formalmente, está longe de estar provada. É possível que não possa sequer ser provada ou refutada, tendo em conta que observações antagónicas podem ser incorporadas na teoria e que factores externos podem mudar o comportamento do sistema climático de forma imprevisível. No entanto, o episódio do silenciamento de estudos críticos do famoso artigo de Michael Mann, conhecido por “jockey stick”, mostram como a politização e subsequente polarização à volta de posições antagónicas acabam por resultar em comportamentos profundamente anticientíficos. Houve um conluio de cientistas que defendiam uma dada posição e que usaram o seu domínio no sistema de peer review das publicações da especialidade para suprimir quaisquer estudos que viabilizassem ou validassem a posição contrária.
No caso do aquecimento global, as divergências científicas potenciaram a polarização política à volta do tema. No presente caso da pandemia de Covid-19 ocorreu uma contaminação inversa. Divergências no campo das políticas públicas levaram à procura de sustentação científica para essas posições, politizando a investigação científica. A situação seria sempre complicada, na medida em que não havia praticamente nenhuma informação fidedigna sobre a doença quando se iniciou a epidemia. As decisões públicas seriam sempre arriscadas dada essa falta de informação. Mas as reacções virulentas na opinião pública, instigadas por agentes políticos, rapidamente polarizaram as nossas sociedades em posições antagónicas relativamente ao confinamento, ao encerramento da produção e serviços, à gravidade da doença e até sobre tratamentos potenciais específicos.
Se olharmos retrospectivamente para o caso da hidroxicloroquina, que começou a ser considerada como um potencial tratamento em França, logo no início da pandemia, é evidente que qualquer possibilidade do assunto ser encarado racionalmente acabou no momento em que o presidente americano Donald Trump o referiu numa conferência de imprensa. A polarização à volta de Trump, levou imediatamente a que os seus mais acérrimos defensores considerassem a hidroxicloroquina um tratamento excelente e que os seus detractores a considerassem um perigo para a saúde pública. A quantidade de episódios lamentáveis que se sucederam deviam fazer corar de vergonha os meios de comunicação social e a comunidade científica. Subitamente, um tratamento usado por milhões de pessoas há décadas, particularmente para a prevenção da malária, mas também para outras doenças, tornou-se uma droga mortal cheia de perigos. A droga “do Trump”. Resta saber, no futuro, se alguns casos de malária deixarão de ser prevenidos porque algumas pessoas estarão convencidas de que este medicamento será perigoso.
A cereja no topo do bolo é o episódio do estudo publicado na revista científica Lancet que “provou” os perigos da hidroxicloroquina e levou várias entidades a suspender os ensaios clínicos que estavam a decorrer. Graças a uma investigação do jornal britânico The Guardian, ficámos a saber que o estudo recorria a dados falsos fornecidos por uma empresa que parece saída de um filme de Hollywood sobre charlatões. A Lancet teve de retractar o artigo e o British Medical Journal também retractou outro artigo que fazia uso dos mesmos dados falsos. É óbvio que, independentemente de outros problemas que as publicações científicas já têm habitualmente nos processos de despiste, selecção e validação de artigos a publicar, a pressa na disseminação deste artigo, resultante da polarização política, facilitou a fraude. É perfeitamente possível que se conclua que a hidroxicloroquina não é um tratamento eficaz na prevenção ou tratamento da Covid-19. Mas essa conclusão deve ser baseada numa análise racional feita por especialistas e técnicos de saúde, que apliquem métodos de investigação rigorosos, não nas opiniões políticas de quem não sabe nada do assunto.
O problema grave nestas situações é a instrumentalização da ciência para fins políticos, que resulta numa relativização da própria ciência. Factos e teorias científicas não devem ser escolhidos “a la carte” para sustentar opiniões políticas e tentar desqualificar as posições contrárias, sob pena de se quebrar a relação de confiança que permite a aplicação prática do conhecimento científico.
Observador