Um valor superior a 19 mil milhões de dólares é o montante em activos já recuperados pelo Serviço Nacional de Recuperação de Activos (SENRA) da Procuradoria-Geral da República (PGR), em Angola e no estrangeiro, em operações de combate à corrupção e ao branqueamento de capitais, anunciou a directora da entidade, Eduarda Rodrigues. Refira-se que sete mil milhões de dólares foram recuperados em Angola, enquanto 12 mil milhões o foram em países estrangeiros.
É de apreciar Eduarda Rodrigues, pois do nada, em 2017, conseguiu construir uma estrutura dinâmica, que, apesar das imperfeições legais e operacionais, tem tido um rumo.
Contudo, não duvidando da convicção da verdade dos números apresentados pela procuradora-geral da República adjunta, o certo é que eles não convencem, ficando-se com a impressão de que estarão reportados de forma inadequada.
Há duas razões essenciais para colocar em dúvida os números. Em primeiro lugar, a cronologia. Em 17 de Janeiro deste ano, a procuradora afirmava que Angola já recuperara “5 mil milhões de dólares de activos retirados ilicitamente do país, enquanto aguarda decisões judiciais relativas a bens no valor de 21 mil milhões”.
Sobre este número, fica a pergunta: desde Janeiro de 2023 até Julho de 2023, Angola já ganhou 14 mil milhões de dólares em processos judiciais no estrangeiro? Quais foram? Parece duvidoso. E o que aconteceu ao diferencial entre os 19 mil milhões de agora e os 21 mil milhões referidos em Janeiro?
A 15 de Junho de 2021, a ministra das Finanças anunciava a recuperação de 5 mil milhões de dólares, afirmando que parte do montante corresponderia a processos em curso. Que salto de 5 mil milhões para 19 mil milhões em dois anos apenas!
E, em Abril de 2019, o valor recuperado era de apenas 4 mil milhões de dólares.
Facilmente, por este elenco se vê que os números são díspares. É evidente que o termo “recuperação” tem de ser mais bem definido. Possivelmente, o valor realmente recuperado será pouco superior a 4 mil milhões de dólares, correspondendo o resto, quando muito, a expectativas ou processos em curso.
E isso leva-nos à segunda razão para as dúvidas. De que processos se está a falar e contra quem? Em Angola não há processos judiciais desses montantes. Aliás, desde o Verão de 2022 que não surge nenhuma acusação relevante contra a corrupção ou notícia significativa de confisco não criminal. Nos outros países também não se conhecem processos que justifiquem os valores mencionados. Era importante saber de que processos estamos a falar, em que países e contra quem.
Como se referiu acima, há que definir bem o significado de recuperação. Basta ver o exemplo de Portugal, onde foram noticiados vários arrestos ou apreensões, em especial a Isabel dos Santos. Sirvamo-nos, então, do exemplo dado pelos acontecimentos ligados à filha do antigo presidente da República.
A verdade é que nada de expressivo apreendido a Isabel foi já devolvido a Angola. A EFACEC foi nacionalizada pelo Estado português e não se vê que o Estado angolano receba alguma coisa. O Eurobic continua nas mãos de Isabel dos Santos; estará à venda, mas, possivelmente, terá um destino semelhante à EFACEC ou, caso seja vendido, não se vê que montante vá parar a Angola, o mesmo acontecendo com outras participações “congeladas” de Isabel dos Santos. Aparentemente, segundo uma decisão do Tribunal da Relação de Lisboa de Abril passado, as dívidas de Isabel dos Santos aos bancos portugueses terão prioridade face a Angola, o que deixa a justiça angolana sem instrumentos de recuperação.
Além disso, recentemente surgiram notícias de que o antigo braço-direito de Isabel dos Santos, Mário Leite da Silva, representa um dos principais accionistas do Correio da Manhã, um dos maiores grupos privados da comunicação social portuguesa.
Não é preciso acrescentar mais nada sobre recuperação de activos no estrangeiro. Mas são necessárias notas adicionais.
O SENRA tem um claro problema de transparência informativa. Em Maio deste ano, a “Procuradoria-Geral da República (PGR) anunciou, (…) que vai passar a publicar toda a informação referente à recuperação de activos do Estado desviados no exterior e no interior do país num site, em nome da transparência”.
Estamos em meados de Julho e não se conhece nada sobre esse site, que, como defendemos no passado, seria muito útil.
Uma outra nota refere-se à conexão entre recuperação e processos criminais. É evidente que pode haver recuperação de activos sem processo criminal, mas essa deve ser a excepção e não a regra. E a verdade é que, tirando Carlos São Vicente, não há arguidos com manifestos fundos em prisão, e as acusações criminais existentes não são significativas. Não se entende esta diferença enorme entre activos supostamente recuperados e ausência de processos criminais.
Finalmente, o povo. Este dinheiro é, em última análise, do povo. O povo tem de beneficiar da recuperação de activos. Já defendemos várias vezes a criação de mecanismos que façam chegar o dinheiro ao povo. E esses mecanismos também tardam.
Não adianta continuar a declarar números sem consistência visível, porque no final tudo parecerá uma fantasia e este já não é tempo de “Alices no País das Maravilhas” – o encantamento com tudo o que o poder diz terminou.
Por Rui Verde in Maka Angola