O que a China (não) fez para evitar a pandemia. O resto do mundo pode pedir contas ao regime?

Há provas de que a China violou regras que obrigam à transparência em surtos? Falámos com quem defende que o regime chinês tem de indemnizar os outros países — em biliões. E explica como se pode fazer

A Covid-19 está a ter custos humanos e económicos gigantescos, uma catástrofe que é uma ameaça de saúde e uma emergência económica no presente e no futuro. Sobre o presente e o futuro fala-se 24 horas por dia – mas e sobre o passado? Discutir os primeiros momentos de progressão do vírus  é uma forma de distração política usada por líderes de países onde o surto continua a progredir? É é uma forma de xenofobia em relação à China? Ou é uma inevitabilidade, como afirmam vários académicos, advogados e think tanks? Para estes últimos, o contexto que originou o surto e aquilo que o regime de Pequim fez — ou não fez — para evitar que ele ganhasse estas proporções poderá ter consequências políticas e até judiciais.

think tank britânico Henry Jackson Society publicou este mês um relatório detalhado onde calcula em 3,2 biliões de libras (quase 3,7 biliões – milhões de milhões – de euros) o valor mínimo em indemnizações que o regime chinês deveria pagar – e só considerando os países do G7 (EUA, Reino Unido, Alemanha, Canadá, França, Japão e Itália). Em concreto, na opinião deste think tank, a China “violou de forma patente” as International Health Regulations (IHR), uma legislação vinculativa criada sob os auspícios da Organização Mundial de Saúde e das Nações Unidas, traduzível por Regulamentos Sanitários Internacionais.

Estas IHR são uma legislação que foi revista e alargada em 2005, após o surto de SARS (2002/2003, que também terá tido origem num “mercado vivo” chinês), e que obriga os 194 países signatários – entre os quais, a China – a fazerem todos os esforços, ao mínimo sinal de um surto, para reunir e transmitir toda e qualquer informação que possa ajudar a compreender e combater uma possível ameaça sanitária com implicações internacionais, além de obrigar a que o país procure consultoria internacional (desde logo, da OMS) em tempo útil.

Esta sexta-feira o regime chinês garantiu que não houve qualquer maquilhagem do número de mortos, garantindo que “a China não autoriza encobrimentos”. Um porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros chinês admitiu “atrasos e omissões” no registo das vítimas, mas assegurou ter havido uma “resposta irrepreensível” ao surto por parte do governo.

O regime chinês fez todos os esforços para avisar o resto dos países? Foi negligente? Incompetente? Agiu de forma intencional? E se não fez tudo o que podia, é possível prová-lo?  Na opinião de Matthew Henderson, um dos autores do relatório da Henry Jackson Society, “o partido comunista chinês não aprendeu nada com os seus falhanços na epidemia de SARS, em 2002/2003. Os seus erros, mentiras e desinformação, desde o início da epidemia Covid-19, já tiveram consequências muito mais mortíferas”. O organismo sublinha que “não se atribui qualquer culpa ao povo chinês pelo que aconteceu – as pessoas da China são vítimas inocentes, como todos nós. O que aconteceu foi culpa do partido comunista chinês”. Mas “num mundo em que alguns Estados autoritários tantas vezes agem com impunidade, não se pode esquecer que a ordem internacional, baseada em regras [como as IHR], impõem obrigações a toda a gente”.

“Regime chinês não foi transparente com a OMS”, diz James Kraska

“Para proteger o futuro, temos de responsabilizar a China” é o título de um artigo publicado pela revista norte-americana National Reviewem finais de março, no qual se criticava, essencialmente, dois pontos: o “laxismo” persistente e a “negligência” sanitária associada aos ‘mercados vivos’ e, por outro lado, os “meses perdidos” com o “encobrimento” que o regime chinês fez da perigosidade do vírus, perseguindo-se médicos e cientistas e, alegadamente, escondendo-se informações essenciais sobre o vírus, desde logo a facilidade com que ocorre o contágio entre humanos.

Sobretudo por esta segunda razão, isto é, o grau de transparência e colaboração com a Organização Mundial de Saúde (OMS) e com o resto do mundo, James Kraska, um académico ligado à norte-americana US Naval War College e professor convidado na Universidade de Harvard, com vasta experiência no estudo do regime chinês, defendeu em finais de março que a China é “legalmente responsável pelos danos da Covid-19 e as indemnizações podem ascender a biliões [de dólares]”.

James Kraska escreveu sobre este tema num influente portal de notícias sobre segurança nacional norte-americana, o War on the Rocks. O regime chinês manteve, oficialmente, que só ocorreram 3.221 mortes em toda a província de Hubei, onde fica Wuhan (cidade que tem 11 milhões de habitantes), tantas mortes quanto as que já houve no Luxemburgo (onde vivem 600 mil pessoas). Esta semana, reviu esse número em alta: foram mais 50%, afinal. Mas isso não é o pior: o mais grave foi o que aconteceu entre os últimos meses de 2019 e janeiro de 2020, argumenta James Kraska, em entrevista ao Observador.

James Kraska é professor da US Naval War College, em Rhode Island (EUA), e professor convidado na Universidade de Harvard

 

“A China tinha uma obrigação legal de informar a Organização Mundial de Saúde e fornecer informação detalhada e transparente”, afirma o académico, sublinhando, tal como a Henry Jackson Society, que as suas críticas se dirigem não a um país ou um povo (a China, o povo chinês) mas, sim, a um regime (o regime comunista liderado por Xi Jinping). A questão é se existem bases para argumentar que a China podia ter, em vários momentos, reagido de outra forma. E se será fácil prová-las.

“O que se passou não foi apenas um país a fazer o melhor que podia e, nesse esforço, cometer alguns erros… Vários países estão a sofrer muito com esta pandemia e por todo o mundo há líderes bem intencionados que, com maior ou menor sucesso, estão a fazer o melhor que podem e sabem para conter o problema”, afirma Kraska, ao Observador. Mas não foi isso que se passou na China, afirma Kraska. “O regime chinês não só tentou encobrir internamente o que estava a acontecer como também não foi transparente com a OMS”, diz, destacando, também, como “Xi Jinping andou ao longo de janeiro em contactos com os governos de todo o mundo para lhes implorar que não proibissem as viagens vindas da China”, o que terá sido decisivo para a propagação mundial do vírus.

A China perdeu dois meses até avisar o Mundo?

O conselheiro de segurança nacional dos EUA Robert O’Brien comentou em meados de março que, “infelizmente, em vez de aplicarem as melhores práticas, na China preferiu-se encobrir este surto que começou em Wuhan”. Baseando-se em notícias que foram publicadas sobretudo antes de o regime expulsar do país vários jornalistas estrangeiros, O’Brien lamenta que, em vez de alertar o mundo, o regime tenha decidido silenciar médicos (incluindo Li Wenliang, o oftalmologista de Wuhan que denunciou o surto, mais tarde assinou uma declaração de culpa por “perturbar a ordem social” e, quando regressou ao trabalho, acabou por morrer contagiado pela mesma doença). Isso “custou ao resto do mundo cerca de dois meses de aviso”, defendeu.

Um estudo da Universidade de Southampton, no Reino Unido, calculou que ter atuado com medidas restritivas (desde logo nas viagens aéreas) uma semana antes, duas semanas antes ou três semanas antes teria reduzido o contágio internacional em 66%, 86% e 95%, respetivamente.

No mínimo, o primeiro caso de infeção terá sido identificado no mês de dezembro, mas ao longo das últimas semanas de 2019 o regime descartou as primeiras denúncias como “rumores”. Só a 31 de dezembro, depois de a polícia anunciar que estava a investigar oito pessoas por espalharem “rumores” (uma das quais era Li Wenliang) é que a comissão de saúde de Wuhan divulga finalmente um comunicado em que confirma a infeção de 27 pessoas, 7 das quais em estado grave. Mas o tom do comunicado, fora isso, é tranquilizador: “A investigação até ao momento não comprovou que possa existir transmissão de pessoa para pessoa e não há profissionais de saúde infetados”.

Sabe-se hoje que muitos perceberam que havia transmissão entre humanos pelo menos desde meados de dezembro – são vários os relatos de médicos que, enquanto conversavam e tratavam pacientes, lhes diziam que não havia transmissão de pessoa para pessoa, enquanto se mantinham a uma distância de dois metros.

Só muito mais tarde documentos secretos revelados pelo South China Morning Post demonstraram que as autoridades chinesas sabiam da transmissibilidade e até tinham identificado um homem de 55 anos, de Hubei, como o primeiro caso diagnosticado – não em dezembro, mas sim em meados de novembro. Há muitos contornos desta história que ainda estão por perceber – se é que algum dia vão ser compreendidos. O próprio Presidente francês, Emmanuel Macron, disse isso mesmo numa entrevista ao Financial Times, publicada esta sexta-feira.

Nesse comunicado de 31 de dezembro, da autoridade de saúde de Wuhan, lia-se que “esta é uma doença que pode ser prevenida e controlada evitando a circulação em espaços fechados e evitando locais com muita concentração de pessoas, bem como usando máscaras ao sair de casa”.

Mas esta era uma tranquilidade apenas aparente: como noticiou o The Washington Post, pelo menos desde 26 de dezembro as autoridades tinham perfeita noção de que este era um vírus bem mais perigoso e contagioso, semelhante ao SARS. Houve reuniões urgentes entre cientistas e a cadeia de comando do poder, que foram alertados para os riscos. Porém, só na passagem de ano é que houve uma primeira informação à OMS sobre um misteriosa pneumonia viral que parecia estar a emergir. E a detenção das oito pessoas suspeitas, incluindo o oftalmologista Li Wenliang, foi noticiada em horário nobre no dia 1 de janeiro, assustando a comunidade médica.

Na segunda semana de janeiro, a China indicou que tinha descodificado o genoma do vírus, mas depois disso ainda demorou semanas a prestar mais informação sobre as pessoas que tinham ficado doentes. Essa informação só foi dada depois do conclave do Partido Comunista (que decorreu entre 11 e 17 de janeiro, dias em que as autoridades disseram não terem existido quaisquer novas infeções ou mortes).

Durante esses dias, a 14 de janeiro, a OMS deu eco, através do Twitter, a alegadas “investigações preliminares pelas autoridades chinesas que não encontraram evidências claras de transmissão humano-humano” – OMS que, por tomadas de posição como essa, tem estado na mira de Donald Trump, que anunciou a suspensão do financiamento à organização. Isto embora o próprio Trump tenha também, mais tarde, a 24 de janeiro, elogiado os “esforços e a transparência” da China na contenção do vírus. Este sábado, o Presidente americano afirmou numa conferência de imprensa que a China poderia sofrer consequências se ficar provado que o regime foi “conscientemente responsável” pelo surto.

Conclave do Partido Comunista decorreu entre 11 e 17 de janeiro, dias em que as autoridades disseram não terem existido quaisquer novas infeções ou mortes

 

Nos últimos dias, documentos confidenciais noticiados pela Associated Press revelaram que a 14 de janeiro (em pleno conclave do partido) o diretor da Comissão Nacional chinesa de Saúde, Ma Xiaowei, fez uma teleconferência com vários responsáveis de saúde do país, onde afirmou que “a situação epidémica é grave e complexa, é o desafio mais sério desde a SARS em 2003 e é provável que se torne numa grande questão de saúde pública”.

Esta foi uma informação confirmada pela Associated Press não apenas através dos documentos mas também junto de duas fontes que estiveram presentes na teleconferência. Os documentos indicam que a avaliação de Ma Xiaowei foi transmitida para dar instruções vindas diretamente da cúpula do governo: do Presidente Xi Jinping, do primeiro-ministro Li Kequiang e do vice-primeiro-ministro Sun Chunlan. Mas os responsáveis políticos só viriam a pronunciar-se publicamente sobre a situação a 20 de janeiro, numa declaração pública de Xi Jinping.

“O aspeto que mais me incomoda em todo este processo é que o regime chinês sabia que já havia 1.700 profissionais de saúde infetados e não deu essa informação à OMS”, afirma James Kraska, ouvido pelo Observador. “Houve um padrão de conduta errada por parte da China que nos fez a todos perder tempo valioso. Isto foi uma atuação censurável por parte do regime chinês e estamos todos a sofrer as consequências disso”, defende James Kraska, sublinhando que esta não é apenas uma matéria de julgamento moral ou, mesmo, político. É uma questão legal.

As medidas retaliatórias. Transformar o ilegal em legal

Do que é que falamos, então, quando falamos numa eventual compensação? Os Estados devem levar a China a tribunal? “Não se trata exatamente de levar a China a tribunal, isso não é muito realista”, esclarece James Kraska, ao Observador. “Mas há medidas de auto-ajuda que os Estados podem tomar, medidas retaliatórias, decisões que os Estados podem tomar quando são prejudicados por atos internacionais reprováveis”.

Essas medidas retaliatórias – “lawful countermeasures”, na expressão anglo-saxónica usada por James Kraska –  partem de um conceito relativamente simples de entender: um Estado, sozinho ou em articulação com outros, faz uma avaliação dos danos que sofreu, das provas que existem sobre a conduta do outro Estado e toma uma decisão — se considerar que foi prejudicado pode partir para a tomada de medidas concretas que de outra forma seriam consideradas ilegais.

Segundo James Kraska, todas estas eventuais medidas têm na sua base uma suspensão das obrigações legais por um Estado em relação a outro, isto numa situação em que a comunidade internacional – por exemplo através do Tribunal Internacional de Justiça, da ONU – não obrigue o Estado que infringiu as regras a indemnizar os outros.

Seria como fazer justiça pelas próprias mãos. “Exemplos? Pode ser qualquer coisa que seja proporcional: podem ser medidas tomadas na área do comércio, pode ser repudiar o pagamento de uma dívida, podem ser medidas que violem a soberania do outro Estado, como por exemplo atacar a firewall chinesa na Internet ou transmitir meios de comunicação social ocidentais para a China, para desestabilizar o regime que está na origem do problema”, diz James Kraska. E acrescenta: “Tudo coisas que seriam obviamente, em tempos normais, consideradas violações da soberania de outro Estado mas que os Estados poderiam considerar justificáveis, à luz do que aconteceu”.

Poderia estar em cima da mesa, até, nacionalizar à força ativos chineses nos diferentes países, incluindo participações financeiras em empresas, admite James Kraska. “Seria, também, uma forma de mostrar que o direito internacional funciona. Porque a Europa, por exemplo, gosta muito de defender o direito internacional na teoria mas toma poucas iniciativas para o fazer cumprir”, diz o académico, acrescentando que “seria uma oportunidade para mostrar que o direito internacional não só ladra como também pode morder”.

“Os países deviam estar, nesta altura, a trabalhar para perceber que tipo de medidas de retaliação poderiam ser tomadas”, defende o norte-americano. “Esta é uma discussão, uma ponderação, que tem de estar a acontecer, para que cada Estado ou grupo de Estados perceba que medidas pode tomar, que medidas faz sentido tomar, quais poderiam ser mais prejudiciais do que benéficas e para quais se pode avançar – porque os Estados não devem pensar que estão de mãos atadas”.

E na área das empresas? É possível pedir contas ao regime chinês?

O Observador apurou que, na área do direito internacional privado, já estão em curso algumas iniciativas exploratórias por parte de empresas com unidades na China para, potencialmente, demandar o regime chinês em tribunal por perdas sofridas e agravadas pelo alegado encobrimento da doença. Será que, além dos Estados, as empresas também poderão reclamar com sucesso uma compensação por perdas nos seus investimentos em território chinês?

Agostinho Pereira de Miranda, experiente advogado ligado à Miranda & Associados (Miranda Alliance), confirma ao Observador que, no seu entendimento, essa “possibilidade se abre, em princípio, aos investidores oriundos de um dos 145 países com os quais a República Popular da China assinou um tratado bilateral de proteção recíproca de investimentos (‘Bilateral Investment Treaty’ ou ‘BIT’, na versão inglesa)”. Estarão nessa situação, por exemplo, os investidores sediados em Portugal, como no Reino Unido, Japão, França, Alemanha, entre muitos outros, diz o advogado. Com os EUA, a China não tem um BIT.

“A responsabilidade do Estado chinês dependerá sempre da existência de violação culposa de uma das garantias conferidas pelo BIT aos investidores do outro Estado”, acrescenta, sendo que “tais garantias dependem do tratado em causa, mas tipicamente contemplam vários dos seguintes direitos ou prerrogativas: ‘tratamento nacional’, isto é, o investidor estrangeiro terá direitos não inferiores aos atribuídos aos  investidores nacionais; ‘nação mais favorecida’: o investidor estrangeiro terá direitos não inferiores aos dos investidores do terceiro Estado mais favorecido; tratamento justo e equitativo; garantia de não expropriação ou nacionalização sem justa indemnização; proteção e segurança do investimento; proporcionalidade da conduta do Estado; direito de livre circulação; etc”.

Agostinho Pereira de Miranda sublinha que “a violação dos direitos referidos por parte do Estado da República Popular da China terá de ser culposa, isto é, não bastará, em princípio, a mera negligência atribuível ao Estado”. Ou seja, será necessário provar que houve “culpa dolosa, ainda que meramente eventual”, assinala o especialista em direito internacional privado. “Por outro lado, assumindo que existem danos ou perdas contabilizáveis, terá também de ocorrer um nexo de causalidade entre a ação ou omissão do Estado e o prejuízo sofrido pelo investidor estrangeiro”, esclarece.

Mas há um ponto em que o direito privado e o direito público se cruzam. Se os Estados tomarem alguma ação, como as medidas retaliatórias sugeridas por James Kraska, podem dessa forma indiretamente estar a garantir meios para ajudar as empresas nacionais – desde logo, poupando-lhes na cobrança de impostos.

Como assim? O senador republicano Lindsey Graham, um dos principais aliados do Presidente Donald Trump, deu uma ideia aparentemente simples: defendeu que os Estados Unidos da América, deviam tomar como medida retaliatória a interrupção dos pagamentos dos juros das dívidas americanas que estão nas mãos da China. “Eles é que nos deviam estar a pagar a nós”, afirmou.

Não seria coisa pouca: os últimos cálculos apontam para que a República Popular da China seja o segundo maior credor dos EUA (depois do Japão), sendo dona de 1,08 biliões de dólares da dívida do Tesouro norte-americano – valor nominal, sem contar com os pagamentos de juros sobre essas obrigações.

Seria como impor sanções económicas à China? “Sim, basicamente é isso”, diz James Kraska. “Porque é que não tratamos a China como tratamos a Rússia? Estamos a falar de dois regimes igualmente autocráticos – a China até é pior, em vários aspetos, do que a Rússia. Porque é que os tratamos de forma tão diferente?”, pergunta.

No caso de Portugal, além das participações em grandes empresas da área da energia e financeira, por exemplo, a China tornou-se um importante credor do Estado português, sobretudo após a última crise da dívida europeia. Houve colocações privadas de dívida e o “suporte” em leilões de Obrigações do Tesouro que resultaram do “roadshow” que Fernando Teixeira dos Santos, então ministro das Finanças, fez na China, perto do Natal de 2010, quando Portugal tentava escapar ao pedido de ajuda à troika (que acabaria por surgir em abril de 2011). Não existem, porém, dados sólidos e atualizados que permitam calcular quanta dívida portuguesa, italiana ou espanhola o Estado chinês tem nesta altura.

As várias “avenidas legais” que os países têm para serem indemnizados pela China

A demanda judicial ao abrigo das Bilateral Investment Treaties (BIT) de que falou Agostinho Pereira de Miranda é uma das 10 “avenidas legais” que “concebivelmente estariam disponíveis” para forçar uma compensação por parte da República Popular da China, sistematiza a Henry Jackson Society. Estes acordos têm, regra geral, mecanismos de resolução de disputas que poderiam ser ativados, como explicou o advogado ligado à Miranda.

Além desta “avenida”, a Henry Jackson Society enumera mais nove hipóteses, a primeira das quais um processo por violação das referidas International Health Regulations (de 2005). O artigo 56.º desse regulamento prevê que os Estados tentem resolver a disputa de forma pacífica pelos meios à sua escolha: caso não seja possível, é aberto um processo junto da diretoria-geral da OMS, sendo que o caso poderia chegar à arbitragem do Tribunal Internacional de Justiça em Haia (não se sabe, na prática, porque nunca houve um caso destes).

Os Estados prejudicados poderiam também, afirma o think tank, recorrer diretamente a Haia, embora a China não seja um dos países que aceitam a jurisdição desse tribunal, que tem jurisdição sobre cinco dos sete países do G7, excluindo França e EUA. Todavia, mesmo que a China não aceitasse essa jurisdição, há um artigo (o 75.º) da constituição da Organização Mundial de Saúde que prevê que algumas disputas podem acabar por ser levadas a Haia. E aí, portanto, a China poderia ter de se submeter a uma decisão do Tribunal Internacional de Justiça ou, eventualmente, a uma decisão do Tribunal Permanente de Arbitragem, também em Haia.

A Henry Jackson Society destaca, também, uma outra via: a Organização Mundial do Comércio (OMC). É certo que este organismo se prende essencialmente com questões (e conflitos) relacionados com comércio externo, “mas, no passado, o mecanismo de resolução de disputas da OMC já foi utilizado como veículo para conflitos que não estavam diretamente relacionados com comércio”.

Há um exemplo recente que o think tank recorda: existe uma série de processos em curso na OMC relacionados com as hostilidades entre o Qatar e outros Estados do Golfo (processos que têm levado alguns a criticar a OMC por acharem que esta poderá estar a exceder as suas competências judiciais). “Seria, portanto, possível apresentar uma acusação junto da OMC alegando que a China, pela sua gestão do surto de Covid-19, se desviou das suas obrigações enquanto membro da OMC”, defende a Henry Jackson Society.

Outro aspeto positivo dessa abordagem é que a OMC costuma trabalhar muito rapidamente, normalmente demorando entre três meses e um ano a resolver a maioria dos casos. Esta seria mais uma das abordagens potencialmente frutíferas descritas pela Henry Jackson Society, a que o think tank acrescenta mais algumas, sobretudo na área do direito nacional de países como os EUA e o Reino Unido (pode consultar o relatório na íntegra nesta ligação, em pdf).

A OMS deveria ser a primeira a censurar a China pela violação das regras da ONU, defende o jurista Valério de Oliveira Mazzuoli

Vários juristas se têm interessado por este tema, podendo-se, também, salientar a análise do jurista brasileiro Valério de Oliveira Mazzuoli, que, num extenso trabalho publicado nas últimas semanas enumera os factos conhecidos e considera que “as notícias amplamente divulgadas na imprensa demonstram que os agentes do Estado [chinês] demoraram muito mais tempo do que o estabelecido para compartilhar as informações internas a nível internacional”.

A informação que existe “demonstra que a China violou as normas expressas no Regulamento Sanitário Internacional e, por consequência, a ordem global relativa à proteção da saúde humana, ensejando, por isso, responsabilização internacional pelos prejuízos causados à saúde pública e à economia de vários países do mundo”, argumenta Valério de Oliveira Mazzuoli.

O jurista sublinha, portanto, que a própria OMS teria de ser a primeira a censurar a China pela violação das IHR (que são, no fundo, regras suas, da ONU), o que não parece ser muito provável tendo em conta as últimas posições assumidas pelo organismo sobre o regime chinês e pelas iniciativas que a China tem tomado (e publicitado) de ajuda aos outros países.

“Você agradeceria ao pirómano pela ajuda depois de ele ter posto fogo ao quarteirão?”

O Observador perguntou a James Kraska se faz sentido avançar para estas medidas retaliatórias quando se depende da China para que cheguem a alguns países, como Portugal, equipamentos, desde ventiladores até equipamentos de proteção individual. Por outras palavras: a China não está, nesta fase, a ser útil e a ajudar os países? “Ajudar? Você agradeceria ao pirómano pela ajuda depois de ele ter posto fogo ao quarteirão? É melhor do que não estarem a fazer nada, mas não acho que compense o que fizeram”, responde.

O académico diz que o regime chinês está muito empenhado em controlar a “narrativa”, tanto interna como externa – chegando-se até ao ponto de terem saído notícias em meios de comunicação controlados pelo regime a sugerir que o vírus poderia ter sido trazido por uma delegação de espiões norte-americanos, entre outras teses.

A China está numa guerra fria com os EUA e, provavelmente, também com a Europa”, assevera James Kraska. “Quem leu o livro ‘A Maratona de 100 Anos’, escrito por Michael Pillsbury, sabe que a China quer tornar-se a potência hegemónica no mundo” e, agora, “eles percebem como esta situação lhes degradou a imagem e estão a fazer o possível para corrigir essa narrativa”.

E do ponto de vista dos EUA? Tomar medidas retaliatórias duras não poderia iniciar uma guerra? “Acredite que não. O que o regime chinês tem medo, mais do que qualquer outra coisa, é de ver a sua posição posta em causa. Os líderes do partido comunista só querem preservar o seu poder, inclusivamente sobre o próprio povo”, defende James Kraska.

“Não me parece que a China queira entrar em guerra só porque outro país deixou de lhe pagar os juros da dívida…”. O académico vai mais longe: “Outra coisa que devia estar em cima da mesa era excluir a China da Organização Mundial do Comércio – toda a gente finge que eles cumprem as regras mas toda a gente sabe que não as cumprem”.

Mesmo que os outros países, seja da Europa ou dos EUA, não avancem para estas medidas retaliatórias, James Kraska espera que esta crise sirva para que cada vez mais os Estados e as empresas repensem a sua dependência da China, na cadeia de produção e distribuição de bens, enquanto o regime não mudar.

As empresas devem ser as primeiras a dar esse passo, deslocando as suas estruturas de produção e fornecimento para outros países: “É claro que isso poderá trazer algum ajustamento doloroso, em termos económicos – as pessoas podem querer preferir comprar um televisor por 200 dólares feito na China mas não seria melhor pagar 210 por ter sido produzido na Malásia? Ou pagar 350 por um que tivesse sido produzido em Portugal?”

“Isto são tudo escolhas que os países têm de fazer”, diz James Kraska, que garante que não sabe “se depois de tudo isto a China vai emergir como uma potência mundial ainda mais poderosa do que já era”. “Eu, pessoalmente, acho que os EUA e a Europa são mais fortes, mas… será que vão ter a força de vontade para manter essa força? Veremos…”.

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