Nenhum dos países africanos lusófonos apoiou a invasão da Ucrânia pela Rússia, mas só Cabo Verde e São Tomé e Príncipe a condenaram de forma consistente. A estratégia dual dos restantes, que mantêm amizade com Moscovo e Kiev, pode esconder uma aproximação maior e crescente ao Kremlin. “Vamos assistir, no futuro, a uma maior presença da Rússia em África e também nos países da CPLP”, prevê ao Expresso o analista Luís Bernardino.
África tornou-se um teatro mais importante para a Rússia depois da invasão da Ucrânia, em 2022, ao proporcionar-lhe um palco para mostrar que Moscovo continua a ser bem vista e encarada como capital de uma grande potência. Vários analistas têm referido que, por causa da nova centralidade africana, a Rússia investe pesadamente em campanhas de desinformação ali, com argumentário em que loas ao mundo multipolar estão sempre presentes.
É fácil de compreender: “Com os seus 54 votos na Assembleia-Geral da ONU, África também pode fornecer alguma cobertura para as violações flagrantes da Carta das Nações Unidas pela Rússia”, diz ao Expresso Joseph Siegle, que lidera as investigações e comunicações estratégicas do Centro de Estudos Estratégicos de África, e que estuda o papel de “atores” estrangeiros — incluindo a Rússia — no continente africano. “África é mais importante para a Rússia do que a Rússia é para África.”
Nas várias votações de resoluções na Assembleia-Geral da ONU, dois aspetos ficaram claros: Cabo Verde e São Tomé e Príncipe condenaram consistentemente a invasão. Nenhum dos países africanos de língua oficial portuguesa (PALOP) apoiou a invasão da Rússia. Mas a posição dos restantes tem sido mais marcada por matizes.
Apenas alguns dias tinham passado desde o início da invasão russa quando, a 2 de março de 2022, Angola e Moçambique se abstiveram na Assembleia-Geral da ONU sobre uma resolução que condenava a incursão militar da Rússia na Ucrânia. Esta foi aprovada com o apoio de 141 dos 193 Estados-membros. Cabo Verde, São Tomé e Príncipe — que, nos últimos dias, assinou um acordo de cooperação militar com a Rússia —, Timor-Leste, Portugal e o Brasil votaram a favor. O voto da Guiné-Bissau não terá sido registado.
A 12 de outubro de 2022, contra a anexação ilegal de quatro regiões ucranianas pela Rússia e subsequente exigência de retirada, os membros da Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP) votaram desta forma: Angola (que se absteve numa resolução anterior), Guiné-Bissau (ausente em votação anterior) e Cabo Verde votaram a favor; Moçambique absteve-se e São Tomé e Príncipe esteve ausente.
Já a 23 de fevereiro de 2023, na véspera do primeiro aniversário da invasão da Ucrânia pela Rússia, uma resolução proposta na ONU a pedir o fim da guerra foi endossada por 141 Estados-membros. Entre as sete abstenções estavam a China, a Índia, Moçambique e Angola.
PALOP NÃO QUEREM ABDICAR DE POSSÍVEIS PARCERIAS
Segundo Siegle, as posições oficiais adotadas pelos PALOP são “amplamente consistentes com o que temos visto em todo o continente”. Ou seja, “embora a maioria tenha condenado [a invasão], muitos permaneceram neutros, porque não querem parecer tomar partido no que é percebido como um conflito entre o Ocidente e o Leste”. Da análise das votações resulta que apenas a Eritreia votou com a Rússia no apoio à invasão, e só as juntas militares no Mali e no Burkina Faso se juntaram à Rússia no voto contra uma “paz justa e duradoura na Ucrânia”.
Esta leitura “reforça que a maior parte do apoio que a Rússia recebeu de África provém de regimes autoritários cooptados por Moscovo, e que, portanto, dependem da Rússia para apoio político”. Nenhum dos PALOP se enquadra naquela categoria, e têm assumido, em grande parte, “uma posição mista relativamente à invasão da Ucrânia pela Rússia”.
Como lembra Mathieu Gotteland, analista dos think tanks africanos IPSA (Initiative pour la Paix et la Sécurité en Afrique) e CRCA (Conflict Research Consortium for Africa), a invasão russa da Ucrânia é sobretudo vista pelos países africanos através da lente das preocupações africanas: “Por um lado, vemos o seu apego à Carta da ONU e à ordem internacional baseada em regras, que, embora imperfeitas, são vistas como forma de preservar os interesses dos países mais pequenos ou mais fracos. Por esse motivo, Cabo Verde e Guiné-Bissau condenaram abertamente a violação da soberania e integridade territorial da Ucrânia”.
“Por outro lado, a Rússia tem amigos de longa data entre os PALOP, incluindo alguns que reforçaram laços com a Rússia e a Bielorrússia após o início da invasão da Ucrânia”, aponta Gotteland, em declarações ao Expresso. “Por essa razão, apenas Cabo Verde e São Tomé e Príncipe votaram consistentemente a favor das resoluções da Assembleia-Geral. Todos os PALOP se abstiveram ou estiveram ausentes na votação sobre a exclusão da Rússia do Conselho de Direitos Humanos da ONU. Cabo Verde foi o primeiro país africano a confirmar a sua participação na cimeira de paz ucraniana que se realizará em breve.”
UCRÂNIA TAMBÉM VAI A JOGO
Já Angola, a Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe têm “historicamente boas relações com a Rússia, e não têm pressa em quebrá-las”, reforça o analista político. Porque não são lineares as posições daqueles países? Gotteland acredita que a entrada em cena da Ucrânia, para salvaguardar alguns dos interesses dos PALOP, faz com que as antigas colónias portuguesas adotem uma estratégia dual.
Em África, a Rússia e a Ucrânia também têm lutado por influência. O Presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelenky, reuniu-se com o primeiro-ministro de Cabo Verde em dezembro passado, e o ministro dos Negócios Estrangeiros, Dmytro Kuleba, viajou pelo continente, tendo-se reunido com os presidentes da Guiné-Bissau e Angola em 2022 e 2023. Uma nova embaixada ucraniana foi inaugurada no mês passado em Maputo (Moçambique).
“Se a Rússia joga com laços mais antigos, preocupações de segurança [no caso do terrorismo em Moçambique] e anulação da dívida externa [Guiné-Bissau], a Ucrânia, por outro lado, desempenhou um papel importante, com a sua iniciativa de exportação de cereais”, sustenta o investigador do IPSA. “A segurança alimentar é uma grande preocupação para o continente e tem sido fortemente afetada pela guerra atual. Moçambique é dos principais destinatários dos cereais ucranianos no âmbito da iniciativa, que também é abertamente apoiada por pequenos Estados dos PALOP, como Cabo Verde e Guiné-Bissau.”
Outras dinâmicas geopolíticas, como a desejada aproximação de Cabo Verde e Angola ao Ocidente, jogam a favor da Ucrânia. “Angola beneficiou claramente da guerra, no sentido de que a Europa procura fontes alternativas de energia”, explica Gotteland. “Outros, como São Tomé e Príncipe, estão a tentar a diplomacia multivectorial, fortalecendo os seus laços com vários parceiros, incluindo a Ucrânia, a Rússia, a China, os Estados Unidos e a União Europeia. O primeiro-ministro de São Tomé e Príncipe, Patrice Trovoada, reafirmou recentemente que o acordo militar que assinou com Moscovo obedece a esta lógica de afirmação da soberania do seu país, e não põe em causa outras parcerias com potências ocidentais.”
Há dias, em entrevista à RDP África, o governante são-tomense defendeu o “acordo perfeitamente habitual e normal”, decorrente de relações antigas com a Rússia, além de sublinar que o compromisso foi selado “mais ou menos no formato dos que temos com vários países ocidentais”. “Não é nada de preocupante nem novo”, asseverou Trovoada, garantindo que São Tomé tem “posição muito clara de condenação da invasão militar da Rússia na Ucrânia”, e que sobre isso “não há espaço para qualquer dúvida”. Rematando, argumentou até: “Não deixamos de ser amigos da Rússia, como somos da Ucrânia”.
Há quatro dias, o Presidente da Guiné-Bissau também garantiu ao seu homólogo russo, Vladimir Putin, que pode contar com a Guiné-Bissau “como aliado permanente”. Umaro Sissoco Embaló encontrava-se na Rússia como convidado para assistir às comemorações do Dia da Vitória quando disse: “A Rússia pode contar com a Guiné-Bissau como aliado permanente, isso não mudará nunca”.
Como esclareceu Luís Bernardino, professor de Relações Internacionais na Universidade Autónoma de Lisboa e especialista em segurança e defesa africana, em declarações ao Expresso, “a Rússia já é um parceiro estratégico da Cooperação de Defesa com Angola, Moçambique e Guiné Equatorial, entre outros países lusófonos”.
“Vamos assistir, no futuro, a uma maior presença da Rússia em África e também nos países da CPLP”, anteviu o analista de Relações Internacionais, segurança e defesa africana. “África foi e continua a ser o continente das oportunidades. É um espaço comercial excelente e com enormes recursos energéticos, para além de, em termos geoestratégia, ligar a América a Europa e a Ásia. A maior presença das potências em África é demonstrativa dessa relevância estratégica. A China, a Rússia e os Estados Unidos, para não falar de muitos outros países, já perceberam isso e estão a posicionar-se neste espaço.”
TÁTICAS POLARIZADORAS EM PAÍSES LUSÓFONOS
A política externa de São Tomé tem-se centrado, tradicionalmente, na diplomacia multilateral e nas parcerias regionais, em vez de se envolver diretamente em conflitos internacionais. Qualquer envolvimento na guerra na Ucrânia seria um afastamento significativo da sua abordagem histórica, segundo os analistas ouvidos.
Siegle, que lidera as investigações e comunicações estratégicas do Centro de Estudos Estratégicos de África, vê no acordo selado a 24 de abril entre Moscovo e São Tomé uma dissonância face à habitual posição do Estado africano: “O que chama a atenção é que o acordo parece permitir visitas de aeronaves e navios de guerra russos. Esta militarização da relação de São Tomé com Moscovo seria um afastamento significativo da sua prática passada, e, se se concretizasse, seria vista como provocação. É também notável que este acordo parece ter sido negociado em circunstâncias opacas, mais típicas de governos autoritários; e este é o principal meio através do qual a Rússia ganhou influência em África. Tendo em conta os freios e contrapesos democráticos em São Tomé, é surpreendente que tal acordo pudesse ter sido negociado sem um diálogo nacional e sem o apoio do Parlamento. Portanto, há uma série de questões que permanecem sem resposta”.
Portugal não estará numa posição única. “A Rússia tem promovido agressivamente a desinformação em África, despertando ressentimentos antigos e polarizadores contra as potências coloniais europeias”, refere Siegle. “Isto teve algum efeito na criação de um sentimento antifrancês, que Moscovo conseguiu utilizar em seu benefício, cooptando os regimes militares em países que sofreram golpes de Estado. A Rússia poderá tentar utilizar as mesmas táticas polarizadoras nos países lusófonos.”
ÁFRICA NO CENTRO DA ESTRATÉGIA GEOPOLÍTICA DE VÁRIOS PAÍSES
Há vários motivos que tornam os países africanos atrativos para o Kremlin, admite ao Expresso Abbey Ogunwale, especialista em estratégias de desenvolvimento em países mais pobres. Em primeiro lugar, a população de África deverá ver um crescimento significativo, tornando-a uma “força demográfica e económica crucial”. Estima-se que até 2050 o continente tenha mais de dois mil milhões de pessoas, com uma proporção significativa de jovens, que deverão contribuir para o desenvolvimento económico e para a inovação.
Mas África também possui vastos recursos naturais, incluindo reservas minerais, de petróleo e de gás, muito procuradas a nível mundial. “A riqueza em recursos naturais atraiu a atenção de muitas potências globais que procuram acesso a estes recursos, contribuindo para um maior envolvimento e concorrência na região”, observa Ogunwale.
“África está a testemunhar o surgimento de iniciativas de integração regional, como a União Africana, que visa promover a unidade, a cooperação e a integração económica entre as nações africanas. Esforços como a Zona de Comércio Livre Continental Africana, que procura criar a maior zona de comércio livre do mundo, demonstram o compromisso de África em impulsionar o comércio intracontinental e o desenvolvimento económico.”
Os países africanos estão cada vez mais envolvidos com intervenientes globais, diversificando as suas parcerias, que já vão além das alianças tradicionais. “Embora historicamente a África tivesse laços mais fortes com antigas potências coloniais, como a França e o Reino Unido, tem vindo a alargar as suas relações com outros países, incluindo a China, a Rússia, a Índia e a Turquia, bem como com potências regionais como a Nigéria e a África do Sul”, conclui Ogunwale.
Fonte: Expresso