O major das Forças Armadas Angolanas (FAA) Pedro Lussati — o rosto mais visível da conhecida ‘Operação Caranguejo’ — revelou ao Tribunal Supremo o que até então parecia o grande ‘mistério’ do seu caso: a origem da sua ‘descomunal’ riqueza. O oficial das FAA, que viu o seu nome exposto no mais mediático esquema de corrupção envolvendo a antiga Casa de Segurança do Presidente da República (CSPR), desfez, no documento enviado à suprema corte, o novelo e contou em detalhe como chegou a somas monetárias extraordinárias.
Depois de o Tribunal da Relação lhe ter negado atender o pedido de anulação da sentença através do recurso que apresentou na primeira instância judicial — que lhe custou apenas a redução da pena de 14 anos para 12 anos — Pedro Lussati recorreu ao Tribunal Supremo, reafirmando a sua inocência e fazendo recurso a várias provas e argumentos contra a aquilo que chama de uma “narrativa” alegadamente inventada pelo general Fernando Garcia Miala.
Na peça de recurso, o major das Forças Armadas Angolanas e os seus advogados atribuem aos tribunais de primeira e segunda instâncias “erros grosseiros”, pelo alegado facto destes foros judiciais não terem “conhecido nem apreciado todos os factos ligados ao processo”, que permitiram assacar ao arguido “factos que nada têm a ver com ele, quer por ter atribuído valor probatório a provas falsas, [e] quer ainda por ter[em] considerado a mera posse de bens como prova de ilicitudes”.
O recurso ao Tribunal Supremo vai mais longe e revela, “no interesse da transparência e da descoberta da verdade material”, como Pedro Lussati obteve a sua riqueza, muito embora a defesa argumente que “não cabe ao recorrente, no processo sub judice [em julgamento], provar como obteve a sua riqueza.
“Todavia, no interesse da transparência e da descoberta da verdade material, o recorrente atesta para este augusto tribunal que a sua riqueza não provém de actos ilícitos praticados no exercício das funções que desempenhou na Unidade da Guarda Presidencial (UGP) ou na Casa de Segurança do Presidente da República (CSPR). Provém da utilização sábia das oportunidades de investimento que lhe foram surgindo; todas elas lícitas, ao longo das duas últimas décadas, nos vários mercados em que concentrou a sua actividade comercial”, começa por explicar.
“O recorrente trabalhou para a UGP numa altura em que o Estado procedia à urbanização e distribuição selectiva dos terrenos públicos para a construção do que constitui hoje os bairros Talatona, Patriota, Futungo e Benfica. O recorrente, tal como muitos outros oficiais das FAA, participou neste processo, que foi dirigido e controlado por generais, e obteve terrenos a custo zero. Porém, teve visão, procurou associados — chineses, franceses, portugueses e outros — para o co-financiamento de projectos e multiplicou exponencialmente o valor do seu património. Adicionalmente, penetrou no mercado internacional de capitais e no mercado internacional de artigos de luxo para diversificar a sua carteira de investimentos. Foi bem-sucedido e construiu assim a sua riqueza”, revela o recurso ao Tribunal Supremo.
Os advogados de Pedro Lussati alegam que o “o único “crime” que este cometeu é o mesmo que tem sido praticado pela grande maioria dos generais e outros dirigentes da classe castrense e não só, que, de acordo com o documento, “souberam aproveitar bem as oportunidades criadas pelo Estado angolano no quadro da política do Estado de acumulação primitiva de capital para a criação de capitalistas nacionais, definida pelo então Comandante-em-Chefe, engenheiro José Eduardo dos Santos para garantir a nossa independência e prosperidade nacional”. “Pode-se qualificar de ‘crime’ a orientação política nacional, definida pelo Chefe de Estado? Certamente que não”, escrevem os advogados ao Supremo.
O contra-argumento do arguido
Na versão que a defesa afirma ter sido “contada” pelo chefe de Serviço de Inteligência e Segurança do Estado (SINSE), general Fernando Garcia Miala, e “repetida pelo Ministério Público”, lê-se que “Pedro Lussati é oficial do Exército de Angola, com a patente de major, tendo estado afecto, pelo menos desde 2007, à Casa de Segurança da Presidência da República de Angola”.
A defesa do oficial das FAA contra-argumenta, apresentando provas de que Pedro Lussati era da UGP, e não da Casa de Segurança, tendo de lá saído para as FAA e não para a Casa de Segurança, tal como se atesta na acusação.
A versão apresentada pelo Ministério Público referia-se também a Pedro Lussati como tendo estado, pelo menos até 2017, no departamento de pagamento financeiro e de tesouraria da Casa de Segurança, cabendo-lhe, à data dos factos, “definir os montantes que deveriam ser levantados junto da banca em Angola, para realizar o pagamento dos militares afectos à Presidência da República, uma vez que muitos deles eram pagos em numerário e não por transferência bancária”.
O recurso de Pedro Lussati ao Supremo contraria de forma categórica tal argumento, argumentando que tal “caracterização” é falsa e que foi a mesma transmitida às autoridades portuguesas através de uma carta rogatória, com o n.º 09/21-SENRA/PGR, que, segundo a defesa do arguido, serviu para obter “informações cruciais sobre o seu património em Portugal, para o roubarem”.
Ao Tribunal Supremo, a defesa de Lussati reafirma que o recorrente não pagava salários, não era financeiro e que nunca lhe foi emitida qualquer credencial para levantamento de valores. “Não é possível que o recorrente seja a pessoa que realizava a distribuição de dinheiro supostamente correspondente às diferenças das folhas de salários, quando não era a si que os financeiros da CSPR prestavam contas no final dos pagamentos”, argumentam os advogados.
A defesa de Pedro Lussati, que é apontado pelo Ministério Público angolano como o ‘cabecilha’ da apelidada ‘Operação Caranguejo,’ nega que o seu constituinte tivesse sido “o responsável da tesouraria”, afirmando que não era ele quem fazia a guarda de todo o dinheiro dos salários da CSPR ainda mais no período de dez anos, de 2008 a 2017. “Toda a narrativa é falsa. Não conseguiu ser provada, porque não corresponde à verdade dos factos”, atesta o recurso.
“Pedro Lussati não conhece nenhum pagador ou financeiro destas unidades, nem sequer teve contacto com os respectivos generais ou mesmo com o comandante destas unidades, o coronel Manuel Correia. Apenas os viu em tribunal. Todavia, Pedro Lussati conhece que existem ou existiam estas unidades, mas não era de sua competência saber pormenores sobre unidades e efectivos dos órgãos de defesa e segurança”, assinala o documento enviado ao Supremo.
As provas do julgamento
O recurso ao Tribunal Supremo aponta, por outro lado, que só os comandantes das unidades e sub-unidades arrolados no processo eram os responsáveis pela elaboração das folhas de salários, incluindo as folhas dos dez batalhões, sendo que a inclusão e a exclusão de efectivos nas respectivas folhas salariais era competência dos comandantes dos referidos batalhões, que estiveram presentes no julgamento.
“O Pedro Lussati nunca os viu. O juiz da causa pediu-os que identificassem o Pedro Lussati, todos eles alegaram nunca ter conhecido Pedro Lussati. Nenhum deles alguma vez conheceu o Pedro Lussati e ficou provado que eram eles que realizavam pagamentos dos seus efectivos e que Pedro Lussati nunca foi a Kuando Kubango, onde se encontravam tais efectivos”, sustenta a defesa, acrescentando:
“Consta dos autos, aliás, o testemunho do general Hélder Vieira Dias ‘Kopelipa’, que assegurou ao Tribunal que o ‘Pedro não tinha qualquer função de mando na CSPR. Não é responsável pela gestão administrativa ou financeira de nenhuma unidade orçamental, não assinava contratos, não era utilizador nem tinha acesso ao Sistema Integrado de Gestão Financeira do Estado, nem nunca assinou ordens de saque. Quem as assinava era eu. Quem controla o dinheiro da Casa Militar sou eu. O dinheiro do Pedro não saiu da Casa Militar. Se quiserem saber de onde saiu o dinheiro que ele tem, perguntem a ele”. (Vol. II, fls.463-583)”.
Sobre os bens e o alegado roubo
No recurso ao Tribunal Supremo, a defesa de Pedro Lussati voltou a rebater as acusações do Ministério Público, sob a argumentação de que “a posse de riqueza, por si só, não constitui crime”.
“Como já foi amplamente demonstrado acima, a acusação não conseguiu sustentar a teoria engendrada pelo general Miala. A grande maioria dos bens móveis aqui referidos, não foram ‘apreendidos’. Foram roubados! Sim, foram roubados pelo general Fernando Garcia Miala na sequência do assalto às propriedades do recorrente”, acusa.
O documento reafirma que uma dessas residências, a de Portugal, funcionava como armazém de artigos fornecidos à consignação, como relógios, iPhone, sapatos e roupas de luxo. Artigos que a defesa afirma ser propriedade do recorrente, mas que tinham donos, que são os fornecedores, que têm com o recorrente contratos firmados para venda destes artigos à consignação. Ou seja, que só depois de vendidos pelo recorrente é que os fornecedores são pagos e o recorrente recebe também a sua comissão.
O ataque ao general Miala
“Estes artigos, que foram abusivamente exibidos pela TPA [Televisão Pública de Angola], como que de actividade criminosa se tratasse, não estavam em Luanda, estavam na casa do requerente em Lisboa. Foram roubados lá pelo general Miala. O general Miala não registou nem entregou tudo o que roubou. Ficou com uma parte e deve ter distribuído outra parte entre os seus comparsas. O Estado angolano deverá assumir a responsabilidade por estes roubos, porque o general Miala agiu em nome do Estado”, voltou a acusar a defesa de Pedro Lussati no documento.
O recurso afirma que Lussati já apresentou queixa ao Presidente da República, na qualidade de superior hierárquico do general Miala, e por se tratar de “um processo atípico em que os acusadores são os ladrões e controlam o sistema de justiça penal”.
O recurso deixa também um conjunto de questões ao Tribunal Supremo em forma de apelo “para a descoberta da verdade material”:
“Como é que a origem do dinheiro de Pedro Lussati pode ser as folhas de salário que ele nunca processou e nunca pagou?
Se Pedro Lussati desfalcou a Casa de Segurança do Presidente da República antes de 2018, como é que o dinheiro que tirou de lá e que foi encontrado em sua casa é dinheiro novo, com a cara do Presidente João Lourenço?
Como é possível o dinheiro de Pedro Lussati vir dos salários de militares fantasmas, se os militares angolanos não recebem em dólares?
Os dólares apreendidos a Pedro Lussati são dólares novos. Como é possível estes dólares virem da Casa de Segurança do Presidente da República, se Pedro Lussati já saiu de lá em 2018?
Os saldos altos nas contas bancárias de Lussati e do sobrinho
É crime ter dinheiro?
Não estamos numa economia de mercado?
Os generais não são todos ricos? Não têm negócios?
Artigos de luxo encontrados
“‘O comércio à consignação de artigos de luxo é uma prática antiga, bem estabelecida no mundo inteiro, especialmente pelas marcas famosas. Artigos de marca não são vendidos nas lojas comuns. É comum agentes de vendas possuírem armazéns para vendas à consignação. Haverá certamente quem saiba disso no Ministério Público. A quantidade de artigos de luxo novos que foi apreendida, a maneira como estavam condicionados, indicava imediatamente que não eram artigos de consumo do dono da casa. Eram stocks, encomendados para serem entregues. Há em Angola mercado para aqueles artigos de luxo todos?’.
‘Certamente que não, os artigos foram roubados em Portugal e exibidos pela TPA como se de Angola se tratasse, enganando a opinião pública. Como foi possível o Ministério Público deixar-se instrumentalizar dessa maneira?
Como podem apreender bens privados, bens alheios, se ninguém se queixou de ter sido roubada, ou roubada, e mesmo antes de qualquer investigação? Não acharam estranho? Mesmo que alguém cometa um crime patrimonial, há sempre um lesado. Quem é o lesado?
Não é estranho ir prender-se primeiro o bem já com as câmaras de televisão preparadas e em meio a mentiras de que a pessoa em causa estava a fugir do país, com malas carregadas de dinheiro? A quem pretendem enganar? Porque não seguiram a lei e não respeitaram o princípio da presunção da inocência?
Porquê partir logo do pressuposto de que se tratava de actividade criminosa?’
‘A decisão recorrida não tem provas para acusar Pedro Lussati de crime, porque Pedro Lussati não cometeu nenhum crime’. “O Recorrente não roubou nada ao Estado, foi vítima de roubo por parte do ministro Fernando Garcia Miala, que tudo fez para assassinar o recorrente e ficar com seus bens”, lê-se no texto de recurso ao Tribunal Supremo, que o admitiu no mês de Agosto.
Fonte: Isto é Notícia