Não seria neste momento desejável, porque possível, envolver todos os países lusófonos numa empresa de aviação pensada com cabeça tronco e membros?
A atual pandemia, ao colocar a nu a natureza da globalização e as suas consequências, não pode deixar de nos conduzir à ponderação estratégica do conteúdo das medidas de recuperação económica pós covid-19.
As medidas devem ser concebidas numa perspectiva que as integre numa visão de longo prazo, não descurando a pressão dos interesses existentes.
Está fora de causa que a UE é uma prioridade a reforçar, com políticas de coesão sem se perder de vista que não há almoços grátis.
Os apoios que forem deliberados pela UE em resultado da covid-19 terão no final uma fatura que nos será apresentada.
Importa, assim, repensarmos um novo modelo de desenvolvimento que não se alheie da identidade e da alma de que Portugal é portador, resultado de encontros seculares de culturas.
Se esta é a realidade, mais se justifica que contribuamos para o reforço da lusofonia, instrumento de afirmação de Portugal no mundo que, aliás, vai no interesse da UE enquanto tal, pelas relações que esta tem com África e com a América Latina, onde se falam duas das mais importantes línguas mundiais, o português e o castelhano.
O facto de as principais empresas estratégicas portuguesas, não esquecendo as do setor bancário, terem sido vendidas a retalho, sem qualquer ponderação estratégica, enfraqueceu de forma muito grave os instrumentos da política de cooperação do país.
Neste domínio, é fundamental reanalisar a necessidade da recriação de novos instrumentos, incluindo o de uma instituição bancária forte para a cooperação.
É urgente pensar nesta situação, independentemente dos países lusófonos atravessarem um período muito difícil em vários domínios.
Só que não é para o curto prazo que se deve olhar.
Daí colocar aqui à reflexão quatro situações concretas que decorrem da necessidade do reforço e aprofundamento da lusofonia, com os olhos postos no futuro.
A primeira situação respeita à TAP.
O capital maioritário desta envolve o Estado e um grupo privado português, para além de uma empresa privada brasileira.
Esta composição do capital não surgiu por acaso.
Não seria neste momento desejável, porque possível, envolver todos os países lusófonos numa empresa de aviação pensada com cabeça tronco e membro?
Várias soluções são possíveis, inclusive, em alternativa, aprofundar parcerias com empresas lusófonas, sabendo-se que existe um mercado em expansão de cidadãos lusófonos, destinos altamente rentáveis e formas de superação de limitações do capital eventualmente necessário através do recurso às infraestruturas existentes em todos os nossos países.
A segunda situação tem a ver com o facto de a língua portuguesa ser a mais falada do Atlântico sul, região onde, no continente africano, se assiste a cada passo a assaltos a navios para extorsões financeiras por parte de organizações terroristas armadas.
A maioria dos países de língua oficial portuguesa não deve ter nesta região um papel para a defesa do Atlântico sul no quadro da ONU?
A terceira situação respeita ao facto de os nossos países terem no seu conjunto uma das maiores zonas económicas marítimas exclusivas do mundo.
Sabendo-se que mais de 90% do comércio mundial se faz hoje por via marítima, não é possível articular politicas industriais comuns, desde logo na produção de contentores?
A quarta questão respeita à mobilidade dos cidadãos lusófonos.
Não se trata aqui de procurar legitimar a mobilidade total nos territórios dos nossos países.
É, porém, dificilmente compreensível que não haja uma simplificação dos processos burocráticos para essa circulação, de forma gradual, a começar eventualmente pela fixação de critérios de rigor que a possibilitem para personalidades das artes, da cultura e da ciência.
Devemos ter presente que o português é a quarta língua mais falada do mundo e que os encontros seculares entre os nossos povos foram determinantes para a gestação de expressões e manifestações culturais com peso significativo no mundo.
É mais fácil meter a cabeça debaixo da areia, não pensarmos e menos não debatermos estas situações, que vão da TAP à defesa do Atlântico sul, algumas das quais reconheço complexas mas que não devem deixar de serem abordadas.
Vítor Ramalho in Público
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico