Manuel Vicente, ex-vice presidente angolano é implicado, juntamente com outros elementos da elite política, numa rede bancária para transferir irregularmente capitais de Angola para a Europa, em duas auditorias do Banco de Portugal
Duas auditorias de 2016 do Banco de Portugal, que não vieram a público, concluem que uma rede de bancos foi usada para transferir irregularmente dinheiro de Angola para Portugal e outros destinos da União Europeia (UE), revelou o Projecto de Investigação ao Crime Organizado e Corrupção (OCCRP, no acrónimo inglês), um consórcio de centros de investigação e jornalistas. A passividade das autoridades portuguesas e angolanas perante a exposição desta rede contrasta com o arresto preventivo de activos de Isabel dos Santos, recentemente aplicado.
Na investigação publicada este mês, intitulada «Como as elites angolanas montaram uma rede privada de bancos para transferir as suas riquezas para a União Europeia», o OCCRP refere que “um grupo de funcionários do Governo angolano e altos quadros bancários canalizaram centenas de milhões de dólares para fora do país com pouca supervisão, criando a sua própria rede bancária privada, através da qual enviaram dinheiro para Portugal e outros locais da União Europeia”.
Em causa estará, pelo menos, o correspondente a 298 milhões de euros, transferidos por uma rede que, segundo o consórcio, terá tido em Manuel Vicente, antigo Vice-Presidente de Angola, e Leopoldino Fragoso do Nascimento («Dino»), general na reserva e ex-responsável pelo gabinete de comunicação do antigo Presidente José Eduardo dos Santos, os seus principais arquitectos. Segundo o OCCRP, «Dino» e a presidência angolana foram convidados a comentar, optando por não o fazer, e Manuel Vicente, apesar de tentativas para o efeito, não terá sido contactado.
O OCCRP refere que as auditorias do Banco de Portugal consideram que a rede bancária utilizada terá violado dúzias de regras do sector e efectuado milhões de transferências altamente suspeitas, o que terá chamado a atenção das autoridades portuguesas e europeias. Mas que nem por isso terá deixado de funcionar até hoje, refere o consórcio.
A capacidade das elites angolanas para realizarem esta operação e a manterem, apesar das auditorias, “coloca sérias questões sobre a capacidade ou a vontade de Portugal e a UE de travarem este fluxo financeiro ilícito”, refere o consórcio. Uma operação que terá envolvido advogados, empresários, banqueiros, políticos e consultores portugueses.
A operação terá envolvido também a criação de sucursais portuguesas dos angolanos Banco de Negócios Internacional (BNI) – o BNI Europa – e Banco Privado Atlântico (BPA) – o BPA Europa -, entre outras entidades estrangeiras, designadamente em Cabo Verde. Quer em Portugal, quer em Cabo Verde, as sucursais não terão implementado mecanismos adequados contra o branqueamento de capitais e o financiamento do terrorismo nem investigado clientes suspeitos.
De acordo com o consórcio, solicitado a comentar a questão, o BNI Europa, através de um porta-voz, referiu que a instituição agiu de forma transparente junto das autoridades, sublinhou que até agora nenhuma acusação ou multa tinham sido dirigidas ao Banco e lembrou que pela natureza da sua actividade e obrigação de confidencialidade não podia comentar a questão.
João Lourenço criticado
Segundo o consórcio, mais de uma dúzia de funcionários angolanos influentes e suas famílias terão usado a rede, e empresas alegadamente associadas a Isabel dos Santos, filha de José Eduardo dos Santos, terão beneficiado. O caso das denúncias sobre Isabel dos Santos, que além de filha do antigo Presidente presidiu à administração da petrolífera Sonangol, a que estiveram ligados elementos deste grupo, ficaria conhecido internacionalmente como Luanda Leaks. Isabel dos Santos tem vindo sempre a negar as acusações que lhe são imputadas.
Do esquema agora denunciado pelo OCCRP sobressai também o envolvimento de uma elite angolana que permanece no activo. Se é certo que Isabel dos Santos permanece a principal visada pela justiça portuguesa e angolana quando se fala na fuga de capitais para o estrangeiro, não o é menos que são outros os principais cabecilhas identificados por esta investigação e pelas auditorias do Banco de Portugal, nem sempre visados com o mesmo vigor, quer pela justiça, quer pela imprensa.
Apesar de assumir uma agenda anti-corrupção, João Lourenço tem sido criticado pela forma como tem sido executada. William Tonet, jornalista angolano crítico do Presidente anterior, por exemplo, considera um erro estratégico as medidas coercivas para recuperação de activos angolanos no exterior e o MPLA um partido corrupto. Por outro lado, há quem entenda que o actual Procurador Geral da República (PGR) de Angola, Hélder Pitta-Groz, não é credível no combate à corrupção.
A este tipo de críticas João Lourenço contrapõe alegando que “é evidente que a perda repentina dos direitos abismais que alguns pensam ser um direito divino inquestionável, tinha de criar resistência organizada na tentativa de fazer refrear o ímpeto das medidas em curso”.
De acordo com o Africa Monitor Intelligence, um dos argumentos para sustentar críticas ao PGR angolano é o resultado de negociações entre o Serviço de Recuperação de Activos da PGR (PGR-SRA) e alguns visados pelas investigações, considerado favorável a estes últimos, nomeadamente no caso de Jean-Claude Bastos de Morais, que viu caírem acusações contra si. Outro argumento serão as ligações pessoais e familiares do próprio Hélder Pitta-Groz a figuras sob investigação.
Em Portugal, o Governador do Banco de Portugal pouco mais tem sido do que confrontado com os negócios portugueses de Isabel dos Santos, designadamente a sua presença no Eurobic, quer na imprensa, quer nas comissões parlamentares que investigam este assunto.
Na semana passada, Isabel dos Santos reagiu ao arresto das participações que detém na Efacec através da Winterfell2 e Winterfell Industries. Em comunicado, afirmou que o arresto é “um claro abuso e uma patente ilegalidade que as autoridades judiciais portuguesas deveriam cuidar de averiguar e evitar” antes de aceitar o pedido da justiça angolana. Também a participação da filha do ex-presidente José Eduardo dos Santos na operadora de telecomunicações Nos se encontra arrestada por ordem judicial.
Em Angola, adianta a empresária, “o procurador não solicitou o bloqueio das contas das empresas, nem impediu que fossem pagos salários, rendas, impostos, água e luz”, enquanto em Portugal “pediu o bloqueio das contas, impedindo-as de operar e forçando a sua insolvência, levando ao despedimento de uma centena de trabalhadores”, situação agravada pela crise decorrente da pandemia de covid-19. AM