Kissinger: os erros sobre Angola que quase provocaram a Terceira Guerra Mundial

A assunção do erro vem no livro “Anos de Renovação”, de 2011, em que Kissinger dedica um capítulo à crise ocorrida em 1976. Nessa obra conta como foi enganado pelo então Presidente de Zâmbia, Kenneth Kauda, como acreditou em quem não devia e duvidou de quem sabia.

Henry Kissinger, que morreu esta quinta-feira aos 100 anos, uma vida dedicada ao xadrez da diplomacia mundial, demorou 25 anos a reconhecer o seu erro de análise relativamente a Angola, e que quase precipitou o mundo numa terceira guerra mundial.

A assunção do erro vem no livro “Anos de Renovação”, de 2011, em que Kissinger dedica um capítulo à crise ocorrida em 1976. Nele, os EUA tentaram impedir que o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), de Agostinho Neto, assumisse o Governo de uma Angola independente, e que era palco dos primeiros sinais de guerra civil que opunha às duas outras organizações nacionalistas, a Frente Nacional de Libertação de Angola (FNLA), de Holden Roberto, e a União Nacional para a Independência Total de Angola (UNITA), de Jonas Savimbi.

Em “Anos de Renovação”, Kissinger conta como foi enganado pelo então Presidente de Zâmbia, Kenneth Kauda, como acreditou em quem não devia (a CIA) e duvidou de quem sabia (os africanistas do Departamento de Estado).

“O momento de viragem na política dos EUA para Angola”

O mesmo episódio é relatado pelo historiador Tiago Moreira de Sá, atual deputado pelo PSD na Assembleia da República, em “Os Estados Unidos e a descolonização de Angola. Gerald Ford, Henry Kissinger e o programa secreto para Angola”, de 2011.

“Em meados de abril de 1975, Kenneth Kaunda visitou Washington e encontrou-se com (o Presidente dos EUA) Gerald Ford e Henry Kissinger. A viagem, que tinha sido combinada meses antes, devia ser rotineira, não se esperando que tivesse qualquer resultado importante, pretendendo, à partida, servir apenas como uma cortesia para com um dos pioneiros da luta pela independência em África”, escreveu Tiago Moreira de Sá.

O almoço dos três homens em 19 de abril de 1975 na Casa Branca “acabou por se constituir como o momento de viragem na política dos EUA para Angola e mesmo para o continente africano”.

Kaunda convenceu Ford de que a União Soviética estava a intervir em Angola com conselheiros militares e armamento, o que podia ajudar o MPLA a tomar o poder, devendo os Estados Unidos opor-se a tal ação em defesa dos vizinhos daquele país.

“No fundo, a mensagem que o Presidente zambiano trazia era que a intervenção de Moscovo tinha ultrapassado os limites aceitáveis para os Estados Unidos”, frisa Tiago Moreira de Sá.

Angola podia ter estado na origem da Terceira Guerra Mundial

Com este cenário, os investigadores norte-americanos William M. LeoGrande e Peter Kornbluh defendem no livro “Back Channel to Cuba” que a terceira guerra mundial poderia ter começado por causa de Angola, a partir de documentos desclassificados como confidenciais.

Em plena Guerra Fria (1976), Henry Kissinger aconselhou Gerald Ford a ponderar atacar Cuba como resposta ao envio de tropas de Fidel Castro para o país africano.

Um conflito com Havana conduziria a um contra-ataque soviético de proporções inimagináveis e os norte-americanos sabiam disso. Numa reunião entre Kissinger e Ford, na Casa Branca, o secretário de Estado afirmou: “Penso que temos de esmagar Castro”.

O plano passava por bombardear os portos e as instalações militares cubanas como resposta ao apoio militar de Cuba ao MPLA. Depois da fracassada “Operação Mangusto”, conhecida como Baía dos Porcos, e da Crise dos Mísseis cubanos, o Governo norte-americano estava preocupado com o enfraquecimento da posição dos Estados Unidos no xadrez político global, tal como admitiu Kissinger numa reunião em 24 de março de 1976 em que se encontravam as mais altas patentes militares americanas.

No seu livro, os dois investigadores defendem que Washington temia, também, que os cubanos se tornassem “as tropas da revolução” no continente africano e que estendessem a sua influência a outros países, como a Rodésia, a Namíbia ou a África do Sul, pelo que, se eliminassem Castro, poderiam ferir de morte o foco revolucionário.

Pesando todas as possibilidades, Kissinger persistiu na sua intenção de agir militarmente contra Cuba e levou a proposta a Ford, que concorda em 25 de fevereiro de 1976 com a operação e planeia-a para depois das eleições.

A eleição que iria mudar o mundo

Todavia, em 2 de novembro desse mesmo ano a eleição de Jimmy Carter iria mudar a história dos Estados Unidos e do mundo: Carter foi eleito o 39.º Presidente dos Estados Unidos e, com ele na liderança do país, o plano para atacar Cuba nunca se viria a concretizar, evitando aquele que poderia ter sido o início da Terceira Guerra Mundial, sustentam os investigadores em “Back Channel to Cuba”.

Os erros de Kissinger fizeram-se também sentir com a situação em Timor-Leste. Num artigo de opinião publicado hoje no portal de notícias brasileiro UOL, Jamil Chade revisita os acontecimentos de 1975, que antecederam a invasão indonésia de Timor-Leste.

A sangrenta invasão indonésia

Em 2001, o Arquivo de Segurança Nacional da Universidade George Washington publicou documentos secretos que confirmaram pela primeira vez que o Governo indonésio lançou a sua sangrenta invasão de Timor-Leste em dezembro de 1975 com a concordância do Presidente Gerald Ford e do secretário de Estado Henry Kissinger.

Cerca de 200.000 timorenses morreram durante os 25 anos de ocupação. Naquele mês de 1975, Ford e Kissinger reuniram-se com o então Presidente indonésio Suharto durante uma breve escala em Jacarta, enquanto voltavam de Pequim.

“Cientes de que Suharto tinha planos de invadir Timor-Leste e que a invasão era legalmente problemática – em parte devido ao uso pela Indonésia de equipamentos militares dos EUA que o Congresso havia aprovado apenas para autodefesa – Ford e Kissinger queriam garantir que Suharto agisse somente depois que eles regressassem ao território dos EUA”, afirmou a Universidade, ao publicar os dados.

A invasão ocorreu em 7 de dezembro de 1975, no dia seguinte à partida deles, resultando na ocupação violenta e sangrenta de Timor-Leste por um quarto de século. Henry Kissinger sempre negou que tenha havido qualquer discussão substancial sobre Timor-Leste durante a reunião com Suharto, mas um telegrama recém-desclassificado do Departamento de Estado de dezembro de 1975 confirma que essa discussão ocorreu e que Ford e Kissinger aconselharam Suharto que tudo o que fizesse fosse “bem-sucedido rapidamente”.

Kissinger disse a Suharto que o uso de armas fornecidas pelos EUA na invasão – equipamento que, de acordo com a lei dos EUA, não poderia ser usado em operações militares ofensivas porque “poderia criar problemas”, mas indicou que eles poderiam “interpretar” a invasão como autodefesa.

Em 12 de agosto de 1975, alguns dias depois de uma tentativa de golpe em Timor-Leste, Kissinger observou que uma tomada de poder pela Indonésia ocorreria “mais cedo ou mais tarde”.

Seis meses após a ocupação de Timor-Leste,Kissinger reconheceu a altos funcionários do Departamento de Estado que a ajuda militar dos EUA havia sido usada “ilegalmente” e deu a entender as suas próprias dúvidas sobre a invasão.

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